Por Flávio Dieguez e Cássio Leite Vieira
Você acha que o gato
desta página está
saltando do telhado de
cá para o telhado de lá?
Pura impressão. É o
mesmo gato em dois
telhados ao mesmo tempo.
Impossível? Não para a
Física Quântica. Ela
acaba de provar que um
átomo é capaz de estar
em dois lugares na mesma
fração de segundo.
Todo mundo provavelmente
já pensou, uma vez ou
outra, como seria bom
estar em dois shows no
mesmo horário. Só que é
impraticável, certo? Ou
você está em casa ou
está no colégio, não tem
jeito. Ou melhor, não
tinha. Em maio deste ano
os físicos americanos
David Wineland e Chris
Monroe, do Instituto
Nacional de Padrões e
Tecnologia, em Boulder,
Colorado, descobriram
que às vezes o
impraticável acontece.
Numa experiência
sensacional, eles
conseguiram fazer um
átomo aparecer em dois
pontos diferentes do
espaço no mesmo e exato
instante.
Isso não significa que
de agora em diante você
conseguirá ir a dois
shows no mesmíssimo
horário, mas está
provado que o átomo pode
estar aqui e ali numa só
fração de segundo. Em
algumas circunstâncias,
é assim mesmo que a
natureza funciona. Antes
de Wineland e Monroe, já
se sabia que as
partículas subatômicas
eram capazes desse tipo
de proeza, mas ninguém
tinha demonstrado que o
efeito alcançava um
átomo inteiro. Será que
seres grandes como os
gatos poderão repetir a
façanha? Vire a página e
descubra o que os
físicos têm a dizer
sobre essa
possibilidade.
A Mecânica Quântica é o
ramo da Física que
estuda os átomos por
fora e por dentro.
Criada nas primeiras
décadas do século, ela é
ótima, a mais útil de
todas as teorias
científicas, disparado.
Hoje, praticamente tudo
depende dela, a começar
pelos aparelhos
domésticos como a
televisão e os
computadores, até os
instrumentos mais
refinados como radares e
microscópios
eletrônicos. Ainda mais
importante, suas
equações explicaram pela
primeira vez as reações
da química e da
bioquímica, o
funcionamento das
estrelas e do Universo
inteiro. Enfim, este
século tem a cara da
Mecânica Quântica, com
toda a justiça.
Assista
aqui uma série de
documentários produzidos
pela Discovery Channel,
"Tudo
Sobre Incerteza -
Mecânica Quântica"
publicados no You Tube.
São seis vídeos, um
sempre "linkando" o
próximo. Muito didático
e de excelente
qualidade.
Explica não só a Física
Quântica, mas também o
quanto ela afetou a
tecnologia, a cultura, e
a filosofia .
Mas nem os físicos
entendem direito o que
ela faz. "Posso dizer
sem me enganar que
ninguém compreende a
Mecânica Quântica",
escreveu o americano
Richard Feynman
(1918-1988), um dos
cientistas mais
brilhantes deste século,
conhecido justamente por
explicar conceitos
difíceis sem complicar.
Numa de suas palestras,
Feynman abriu o jogo:
"Vou contar-lhes como
funciona a natureza",
disse. "Mas evitem ficar
perguntando, ‘como é que
pode ser assim?’, ou vão
acabar num beco sem
saída. Ninguém sabe por
que as coisas são
assim."
Logo depois de inventar
a nova mecânica, seus
criadores começaram a
desconfiar do que tinham
feito. Um deles, o
austríaco Erwin
Schrödinger, disse em
1935 que, se fosse levar
a sério as leis da
quântica, teria de
acreditar em
mortos-vivos. Para
ilustrar a afirmação,
ele bolou uma
experiência imaginária
na qual um gato era
trancado numa caixa de
metal junto com um vidro
de veneno e um pedaço de
metal radioativo. Depois
de 1 hora, o que
acontecia com o animal?
A resposta, explicou
Schrödinger, dependia do
metal. Se emitisse
radiação, faria o vidro
quebrar e o veneno
liquidaria o gato. Se
não, o felino passaria
incólume pela armadilha.
Do gato para o átomo
O problema é que para as
regras quânticas nenhuma
das duas possibilidades
poderia ser excluída.
Enquanto a caixa
estivesse fechada e
ninguém olhasse lá
dentro, o gato
permaneceria num estado
indefinido, morto e vivo
a um só tempo. Foi uma
situação como essa que
os físicos americanos
David Wineland e Chris
Monroe criaram agora no
laboratório. Não é a
mesma coisa, claro, pois
eles observaram um
simples átomo balançando
de um lado para outro
numa gaiola magnética.
Mas a situação é
análoga, já que a certa
altura do vaivém a
possibilidade de o átomo
estar de um lado ou de
outro da gaiola era a
mesma. Não havia como
decidir. Os americanos,
então, checaram a
posição do átomo com um
laser, confirmando sua
presença nos dois lados
ao mesmo tempo.
Sensação de ridículo
Voltando ao gato, o que
interessava a
Schrödinger era mostrar
que a lei probabilística
da radiação podia
"afetar" um objeto
grande, como um animal,
com conseqüências
absurdas. A questão
central, portanto, era a
incerteza sobre a
radiação, que até onde a
Física sabe, não tem
hora para sair dos
metais. Mais cedo ou
mais tarde, ela acaba
escapando. De alguma
maneira, no fundo do
metal, um núcleo atômico
treme, perde um pedaço
de seu corpo e o
fragmento dispara como
uma partícula subatômica
superveloz. Cada átomo
radioativo tem um prazo
para se fragmentar. Num
metal como o rádio, o
prazo é de 1 620 anos.
No final desse período,
metade do rádio
desaparece, deixando com
meio quilo um bloco que
originalmente pesava 1
quilo.
Numa única hora, porém,
a incerteza é total: a
partícula tem exatamente
50% de chance de pular
fora do metal e 50% de
ficar por lá mesmo.
Automaticamente, o
destino do gato padece
da mesma indefinição. E
isso, declarou
Schrödinger, quer dizer
que o bicho está vivo e
morto também, sem meio
termo possível.
Schrödinger mesmo havia
criado, por acaso, a
equação para calcular as
probabilidades que
definem a situação do
gato. Mas, para ele, a
fórmula final deveria
descrever o movimento
das partículas
subatômicas, ou seja,
corpos materiais. Só
mais tarde o alemão Max
Born mostrou que ela
representava
probabilidades, números
abstratos. Schrödinger
se sentiu ridículo, já
que números não se movem
por aí, existem apenas
na mente (veja o texto
azul na página
anterior). Declarou,
então, que alguma coisa
devia estar errada com
sua equação. Mas foi
inútil. Daí em diante as
probabilidades se
tornariam ferramentas
essenciais no trabalho
dos físicos.
Antes de tentar entender
por que o uso das
probabilidades deixou os
físicos incomodados, é
bom lembrar que na
virada do século a
Física clássica tinha
chegado aos seus
limites. Ela topou com
enigmas aparentemente
insolúveis do ponto de
vista de seus
fundamentos. Um desses
problemas era que, de
acordo com os
ensinamentos
tradi-cionais, os
elétrons nunca poderiam
girar em torno do núcleo
do átomo. Porque, ao
girar, o elétron perde
energia, ou seja,
velocidade. E, ao ficar
mais lento, cairia para
dentro do núcleo. O
átomo não poderia
existir, o que é
absurdo, claro. Não há
dúvida de que os átomos
existem. A quântica
resolveu o enigma dando
um jeito de o elétron
girar sem perder
energia. Basta que ele
esteja em órbitas
especiais, que a teoria
ensina a calcular, e nas
quais a probabilidade de
perder energia é zero.
Graças a isso os átomos
ficam inteiros.
Uma discussão histórica
Mas a introdução das
probabilidades no mundo
físico gerou um dos
maiores rebus de toda a
história do
conhecimento. Filósofos,
escritores e políticos
entraram na discussão e
fizeram todas as
especulações que tinham
direito. Trocaram
argumentos brilhantes,
mas entendimento que é
bom, nada. Num único
ponto todos concordavam:
a Mecânica Quântica
mudava pela raiz o modo
como a ciência encarava
a realidade. Já não
existia exatidão
absoluta nos resultados
da Física. Não havia
certeza se as coisas
tinham forma definida,
como a de uma bola
redonda e raio preciso,
medido com régua e
compasso.
Restaram só porcentagens
De 1930 em diante, as
bolas ficaram incertas
como nevoeiro, um corpo
espalhado no espaço e no
tempo, e tanto podiam
estar aqui como mais
adiante. De certo,
restavam apenas
porcentagens: calculadas
pela fórmula mais
importante da teoria, a
equação de Schrödinger,
elas governavam tudo,
informando que parte da
bola estava em que lugar
e quando, e para onde se
movia. E sendo a equação
o retrato disponível da
realidade, nas
interpretações mais
radicais, a bola era
vista como uma esfera
abstrata, feita de
porcentagens. No centro
vinha a marca de 100%,
indicando que ali se
acharia a bola sempre
que se procurasse. Mais
para fora, os números
iam caindo
indefinidamente, numa
representação dos
limites imperfeitos do
objeto.
Em todos os debates, que
se mantiveram acesos
durante mais de dez
anos, nos meados das
décadas de 20 e 30, essa
era a questão mais
perturbadora e mais
criticada: não fazia
sentido reduzir a
matéria a números ou
qualquer outra entidade
matemática. Não eram
poucos os que defendiam
essa posição com
sinceridade. Werner
Heisenberg, o mais
admirado prodígio da
quântica, comparava as
partículas subatômicas a
figuras geométricas.
Mais ou menos da mesma
maneira como o sábio
grego Platão, no quinto
século antes de Cristo,
achava que os triângulos
constituíam a essência
das coisas. "As
partículas elementares
dificilmente podem ser
chamadas de ‘reais’ na
verdadeira acepção da
palavra", declarou
Heisenberg numa
conferência.
"Deus não joga dados"
Já Albert Einstein fazia
coro com Schrödinger.
Foi nessa época que ele
pronunciou uma frase
memorável: "Deus não
joga dados". Os dados,
nessa comparação, eram
as porcentagens que
governavam o movimento
das partículas. Einstein
tinha um motivo muito
forte para não admitir
plenamente a equação das
probabilidades, pois
achava que a nova
mecânica contradizia a
teoria da relatividade,
de sua autoria.
Argumentou que, se
seguisse as regras
quânticas, uma partícula
poderia agir sobre outra
com velocidade superior
à da luz. E a idéia
fundamental da
relatividade era que
nada podia superar essa
velocidade. Opositor
discreto e polido, que
sempre ressaltava o
valor, mesmo que
parcial, da quântica,
Einstein fez em 1930 uma
última tentativa para
expor suas contradições.
Depois se calou.
Muitos, já no início do
século, simplesmente
desistiram de entender a
quântica, posição que
parece ser a dominante
entre os físicos
modernos. Para eles, a
teoria resolve um monte
de problemas, e isso já
está bom demais. Mesmo
que o preço seja o
silêncio. Como o
americano Richard
Feynman explicava aos
ouvintes de suas
palestras, não dá para
ficar fazendo perguntas
para as quais,
honestamente, não existe
resposta no estágio
atual do conhecimento.
A eficiência da Física
moderna já está
comprovada à exaustão. E
certamente não foi por
esse motivo que os
americanos Monroe e
Wineland decidiram
reproduzir no
laboratório a
experiência que
Schrödinger fez na
imaginação. O que eles
querem é verificar até
que ponto persistem os
efeitos quânticos. Na
visão tradicional eles
valem somente em escala
subatômica. Coisas
grandes não entram, têm
de ser estudadas pelas
teorias ditas
"clássicas". Mas até que
ponto grande é grande,
pequeno é pequeno? Isso
é o que a equipe de
Boulder, Colorado, quer
saber.
Dois mundos separados
No artigo em que
anunciaram o resultado
de sua experiência
(publicado pela revista
americana Science de 24
de maio), Monroe e
Wineland escreveram: "No
centro dessa questão
histórica está a
universalidade da
Mecânica Quântica." Para
eles, as equações não
deveriam ficar
confinadas ao campo das
coisas minúsculas.
Esclarecem que a idéia
de separar a realidade
em duas partiu do
dinamarquês Niels Bohr e
de Werner Heisenberg.
Bohr, especialmente,
afirmava que os mundos
macroscópico e
microscópico eram
"complementares". Ambos
se submetiam às regras
quânticas, mas nos
objetos grandes o efeito
era desprezível e podia
ser descartado. Por
isso, os corpos
macroscópicos
continuavam governados
pelas leis clássicas.
Isso acontece com os
raios de luz, que agem
como ondas, em escala
grande, e como um feixe
de partículas em escala
pequena.
Monroe e Wineland deixam
claro que não concordam
com Bohr. "Ele e
Heisenberg forçaram uma
divisão aparentemente
arbitrária entre os
mundos clássico e
quântico", escreveram os
americanos.
Para ver como a questão
ainda está quente, é só
ler o livro A Mente Nova
doRei, do inglês Roger
Penrose, lançado no
Brasil em 1991.
Catedrático em
Matemática na
Universidade de Oxford e
um líder da pesquisa
teórica atual, Penrose
gasta muitas páginas
convencendo os leitores
de que não é razoável
uma teoria dar
resultados
significativos só no
reino subatômico. "Acho
que a Mecânica Quântica
está errada no que diz
respeito aos corpos
macroscópicos", disse o
cientista à SUPER.
Diversas experiências
recentes mostram que
ainda dá para ampliar os
limites do mundo
quântico. O feito de
Monroe e Wineland é um
recorde impressionante,
já que até agora só
partículas subatômicas
haviam sido forçadas a
ficar em dois lugares ao
mesmo tempo. O átomo que
eles "duplicaram" nos
Estados Unidos, apesar
de ser 10 milhões de
vezes menor que 1
milímetro, ainda é no
mínimo 100 000 vezes
maior do que qualquer
subpartícula. E, ao se
desdobrar em dois, ficou
distante de si mesmo
mais de 80 vezes o seu
próprio tamanho. Quer
dizer, se fosse com um
leitor da SUPER, suas
duas "personalidades"
ficariam afastadas 1 300
metros uma da outra.
Mais de 1 quilômetro!
E agora, o que vai
acontecer?
O próximo passo será
descobrir até onde
avança esse território
intermediário entre os
objetos "médios", como
os átomos, e os grandes,
como moléculas ou seres
vivos. "Com isso,
podemos estudar a
fronteira entre os
fenômenos macroscópicos
e microscópicos", disse
à SUPER o físico
brasileiro Luiz
Davidovich, do Instituto
de Física da
Universidade do Rio de
Janeiro. Ele deve saber,
pois ganhou reputação
internacional em
pesquisas sobre o uso da
estatística nos
fenômenos quânticos.
Elas foram úteis na
experiência dos
americanos e são citadas
por eles.
E agora, o que vai
acontecer com o mundo?
Nada de sobrenatural.
Penrose aposta que a
reforma da Física vai
nascer de um casamento
entre seus dois
alicerces atuais: a
própria quântica e a
teoria da relatividade.
Nem Penrose, nem
ninguém, sabe como fazer
essa união. Mas, nas
tentativas que virão,
experiências como a de
Wineland e Monroe
certamente vão ter
importância decisiva.
É bom entender que tudo
isso está dentro do
limite de comprovação da
Física. O fato de o
átomo ficar em dois
lugares ao mesmo tempo é
real. Está sendo
investigado, inclusive,
porque pode ajudar a
projetar computadores
mais velozes. A
experiência não é um
sinal de que existe
transmigração das almas,
ectoplasma, energia nas
pirâmides ou poder nos
pêndulos ou cristais. A
quântica pode até conter
inconsistências, mas dá
resultados rigorosamente
concretos e reais.
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