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8 de jun. de 2011

A sabedoria da felicidade

São três da tarde e estou sentada ao lado de um velhinho de olhos alegres, pele dourada e a boca quase sem dentes. É assim que a escritora Elizabeth Gilbert descreve Ketut Liyer, curandeiro indonésio de nona geração. Esta é a minha primeira visita a Ketut, e ele lê a minha mão. E me diz que encontrarei trabalho criativo pelo qual me apaixonarei. Também diz com certeza absoluta que acharei a minha alma gêmea. Logo, logo.
 
Elizabeth Gilbert está certa ao dizer que Ketut se parece com Yoda, personagem da série Guerra nas estrelas. Raramente o xamã encarquilhado sai do seu lar humilde em Ubud, na Ilha de Bali. Mas é provável que seu nome seja mais famoso agora, com o sucesso mundial da versão cinematográfica do livro de memórias de Elizabeth Gilbert, o best-seller Comer, rezar, amar, estrelada por Julia Roberts.
 
De acordo com a autora, Ketut é responsável pela previsão que mudou a sua vida. Foi a profecia dele que a levou a formular o conceito de Comer, rezar, amar – um ano de vida passado na Itália, na Índia e em Bali – e obter o adiantamento que permitiu tudo isso.
 
E a descrição encantadora de Ketut fez multidões de forasteiros baterem à porta dele. A vida antiga de obscuridade, a receitar remédios caseiros e rituais para os vizinhos, virou lembrança. Na minha visita mais recente, contei quase 20 pessoas – muitas levando o livro – que aguardavam com paciência que ele lesse as suas mãos.
 
Fato ou ficção?
 
Fui apresentada ao mundo de Ketut em uma livraria no aeroporto de Hong Kong. Era o início de 2008 e eu ia a Bali pela primeira vez. O livro era exibido com destaque, e imaginei que seria uma leitura inspiradora durante o voo de quatro horas até a “Ilha dos Deuses”.
 
Dê o nome que quiser: destino, providência, kismet ou apenas a velha, simples e burra sorte, mas, assim que achei minha poltrona e peguei o livro para ler, a senhora sentada ao meu lado puxou a câmera digital e, empolgada, começou a me mostrar fotografias de um balinês idoso de aspecto feliz. Entusiasmada, ela me informou que aquele era Ketut, o famoso curandeiro que ajudara Elizabeth Gilbert a sair da tristeza e encontrar o sucesso.
 
Curioso, mergulhei nas páginas do livro e decidi fazer uma visita ao adivinho. Será que ele estaria à altura das expectativas sobrenaturais criadas por Elizabeth Gilbert? Eu esperava que sim. Se ele realmente contribuíra com as aspirações dela de escritora, talvez conseguisse dar vida às minhas.
 
O curandeiro
 
Pedi ajuda a alguns colegas viajantes para encontrar o endereço de Ketut, e, num piscar de olhos, estamos a caminho de Ubud. Ao passar pelo portão da frente da casa, vimos um homem alegre, parecido com a descrição de Ketut, sentado na varanda exatamente como Elizabeth Gilbert escrevera. Lia a mão de duas australianas.
 
Ketut nos olha com um sorriso jovial e nos dá um aceno rápido e amistoso. Quando chega a nossa vez de nos sentarmos com ele, aquela sensação predominante de felicidade se mostra contagiosa. Embora fale um inglês muito básico, as palavras simples de Ketut são de entendimento universal e especialmente positivas.
 
É difícil descobrir detalhes exatos da sua vida. Parece que eles mudam um pouco depois de várias visitas. Sob a influência das reflexões de Elizabeth Gilbert, muita gente lhe pergunta a idade, mas o número continua a ser um mistério. Parece que, sinceramente, ele não se lembra do ano em que nasceu. Isso é muito comum entre os balineses, que acham que, na data do nascimento, o mais importante é o dia da semana.
 
Ketut começou a trabalhar como artista plástico e entalhador. Mais tarde, o avô lhe passou os conhecimentos e também o ofício de curandeiro, confiando-lhe pergaminhos sagrados com séculos de existência. Esses textos balineses antigos contêm muitas doutrinas diversas, com rituais sagrados e o tratamento de doenças comuns.
 
Voltei a Bali várias vezes depois daquela primeira visita. Em cada viagem, sempre visito Ketut. A fama de ter influenciado a hoje famosa Elizabeth Gilbert é que lhe dá o seu encanto. Muita gente quer reencenar a viagem da autora em Comer, rezar, amar, do mesmo modo que os mochileiros continuam a buscar na Tailândia A praia da adaptação do livro para o cinema, com Leonardo DiCaprio.
 
Ketut não é guru ou iogue, no sentido tradicional indiano. Não tenta penetrar nas profundezas da alma com olhos candentes para colaborar com a viagem rumo ao esclarecimento, nem parece aceitar alunos, como fez com Elizabeth Gilbert no livro. No entanto, cada visita é uma oportunidade de se banhar na aura de felicidade descomplicada que ele transmite.
 
Mais recentemente, acompanhando uma amiga, mencionei a Ketut que vira na Internet o trailer do filme Comer, rezar, amar, e na mesma hora ele me pediu que o passasse para ele. O filho Nyoman foi nos preparar uma xícara do forte café balinês (sempre servido sem filtrar, com o pó grosso enchendo o fundo da caneca) enquanto eu ia até uma lan house próxima carregar o trailer do filme no laptop.
 
Comer, rezar, amar
 
Ketut assistiu, com vivo interesse, ao começo do trailer, em que o ator que o representa faz a previsão para Julia Roberts: “Você viverá muito tempo [...] Perderá todo o seu dinheiro [...] Não se preocupe, vai recuperar tudo e retornará a Bali, e então vou lhe ensinar tudo o que sei.” O ator abre um sorriso amplo e quase desdentado bem parecido com o de Ketut.
 
Este me pede que repasse o trailer algumas vezes e observa: “Foram essas palavras mesmo que falei para a mulher de Nova York.” Ele quer dizer
Elizabeth Gilbert, cujo nome nem sempre consegue lembrar, muito embora tenha passado meses com ela, e visitantes tenham lhe dado exemplares do livro em todas as traduções disponíveis.
 
Então, ele desvia a atenção da tela do computador e, com os olhos brilhantes, pergunta: “Por que não me usaram? Sou muito mais bonito.” Na verdade, a pergunta é séria.
 
Ketut, o mais longe possível de Hollywood, não entende direito por que não poderia ser ele ali na tela. Tentei explicar que ser ator é muito tedioso, tendo de repetir as mesmas frases várias vezes o dia inteiro; é um serviço muito diferente de ser “Homem Santo”. Também digo que, normalmente, as pessoas não representam a si mesmas no cinema, ressaltando que “a mulher de Nova York” era representada por Julia Roberts. Ketut ainda não está completamente convencido. Para ele, esse é literalmente o papel que nasceu para desempenhar.
 
A sabedoria da felicidade
 
O sol já está se pondo e esse homenzinho mágico lê a mão de duas senhoras americanas. Escuto-o descrever um futuro parecido com o que previu para Elizabeth Gilbert:
 
“Agora você vai encontrar alguém para o resto da vida, que ficará muito feliz de estar com você, e não vai se divorciar de novo.” Os olhos delas brilham, do mesmo jeito que os meus devem ter brilhado durante a primeira visita.
 
O sucesso não traz necessariamente felicidade, mas a felicidade em si cria o sucesso. Acho que esse ditado é verdadeiro no caso de Ketut. A cada encontro, percebo que a maior parte das minhas expectativas originais, vindas das páginas de Comer, rezar, amar, era bastante equivocada. A alegria e o contentamento profundos de Ketut empolgam os visitantes e são como um estímulo para que busquemos concretizar as nossas aspirações, como fez a Elizabeth Gilbert.
 
A real magia de Ketut tem base em uma propriedade muito mais sutil e aparentemente humana: a sabedoria da felicidade.